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19 de outubro de 2017

19 de outubro de 2017 por Maria do Céu Barros comentários
Já aqui temos falado das Habilitações do Santo Ofício como fontes muito importantes na pesquisa genealógica. Se é certo que os paroquiais, de longe a longe, nos permitem apreender alguns vislumbres da realidade daqueles tempos, é nas habilitações que encontramos as fatalidades, os embaraços pelos antepassados de infecta nação, a ambição a par do desespero perante o desvendar  de vergônteas inconvenientes, as deslocações e ausências da terra natal, ecos de um império impossível, a ilegitimidade, a amizade e a rivalidade... enfim, todo um escrutinar de vidas cujo propósito, com fins nada honrosos aos olhos de hoje, gerou resmas de folhas que nos ajudam a escrever a história das nossas famílias para lá do mero acumular de nomes e parentescos.

Serve esta pequena reflexão de introdução à carta que aqui se partilha, datada de 1695, transcrita de uma habilitação (com alguns arranjos para maior facilidade de leitura), onde nos é dada notícia das andanças de Sebastião Gonçalves e de sua mulher Verónica Dias, bisavós do remetente, vítimas da peste e exemplos de luta pela sobrevivência nesses tempos tão adversos. Nela encontram também a explicação da origem de um apelido.



Meu primo (…) 

Já creio saberá V. Mercê como o Reverendo Dr. Provisor nas inquirições da habilitação (...), saiu com seu despacho, pedindo faça declaração da origem do avô materno chamado Sebastião Gonçalves e, tirando informações (…), me informaram ser filho de Salvador Gonçalves e de sua mulher Verónica Dias, moradores que foram (…) nas casas que ficam por cima das de Jerónimo de Magalhães, na esquina da viela ou travessa que vai para a rua de Trás-o-Terreiro dos Padres Loios, que são as que ficam contíguas às casas do dito Jerónimo de Magalhães, e que nelas ficaram vivendo o dito Salvador Gonçalves, pelo seu ofício de cabeiro, e que aí nascera o dito meu avô e outra sua irmã, Maria Ferreira, que foi a mãe de Maria Carneira (…), isto antes que houvesse a peste nesta cidade que parece foi no ano de 1581, conforme o que achei nas sepulturas que estão fora do postigo de Santo António desta cidade, aonde dizem estão enterradas as pessoas que morreram de peste, e não consta houvesse desde então semelhante mal nesta cidade. O que suposto dizem que quando Salvador Gonçalves, antes que houvesse a peste e sendo então o dito Sebastião, meu avô, criança, o mandaram (…) para casa de seus irmãos, que dizem eram sete irmãos moradores na rua do Bairro da dita freguesia (…), dos quais V. Mercê também procede, e a um dos ditos irmãos se chamava Cabeça de Leitão, donde procederam ao depois os Leitões ou Leitoas suas filhas. E que o motivo que houve para se chamarem ao depois de apelido dos Leitões, foi porque, como estivesse o dito irmão de Salvador Gonçalves doente de doença que foi necessário cortar o cabelo, indo à dita igreja rapado, lhe chamaram então as moças daquela freguesia Cabeça de Leitão. E que, como nesta cidade apertasse o dito mal da peste, se foram o dito Salvador Gonçalves e a dita Verónica Dias dela fugindo e levaram em sua companhia a dita Maria, sua filha, que ainda então criavam ao peito por ser criança; e que, chegando à dita freguesia donde era natural, o dito seu irmão o não quis recolher, com o pretexto e receio de que iam ferrados da peste, e lhe fizeram uma barraca ou cabana no monte pegado à dita freguesia, para lá viverem, e lhe levavam de comer e, com efeito, indo o dito Salvador Gonçalves com sua mulher e filha para a dita cabana, sucedeu, daí a dias, morrer nela o dito Salvador Gonçalves, o qual sua mulher enterrou e para isso lhe deram mortalha acochada, e ficou a dita sua mulher vivendo alguns dias, criando ao peito a dita sua filha Maria, até que sucedeu chegar aos termos de morrer e, sentindo-se desta sorte, pediu mortalha e se enterrou a si própria até aos peitos que deixou de fora para a dita criança neles mamar enquanto pudesse. E que, sabendo-se desse desespero, fora o juiz ou ouvidor daquela terra e freguesia e tiraram a dita criança e, para se acabar de criar, apenaram e constrangeram uma mulher de leite, a qual mandaram pôr em outra barraca ou cabana que para isso fizeram; e sucedeu escapar do dito mal a criança e mulher, e que a dita criança se criou ao depois na dita freguesia, em casa dos ditos parentes, aonde era tratada por a menina do milagre em razão de ter escapado do dito mal de peste, até que veio a ser enamorada do morgado (…) que teve a dita filha (…) que veio a falecer religiosa no convento de Santa Clara desta cidade. E que, tendo notícia disso, o dito Sebastião Gonçalves, seu irmão e meu avô, que nesta cidade estava trabalhando de cabeiro, se foi à dita freguesia a buscar a dita irmã para a matar por se haver desonestado com o dito morgado que saiu com seus criados a impedi-lo, de que resultou brigas e pancadarias e houveram feridos e por essa causa a não tratou mais por irmã… 


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