Mais um exemplo de "imaginação controlada " da autoria de Belo Marques, a quem agradecemos.
Por Belo Marques
Ao Matrimónio de Domingos Gonçalves com Domingas Gonçalves desta
freguesia, filha de Geraldo Gonçalves e de sua mulher Isabel Francisca
do lugar do Assento, assisti eu Padre Joseph Cruz de Faria, Vigário desta
Igreja de S. Lourenço de Celeirós, em 11 de Maio de 1670 de que foram
testemunhas Domingos Gonçalves do Assento e António Martins de
Santa Anna, em face do que me assino, dia, mez e anno ut Supra. O
Vigário Joseph da Cruz de Faria
I
Corria o ano da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1677 (D. Afonso
VI).
O mar, ainda que pouco ondulado fazia gemer a estrutura de pinho da nau
Santa Clara. Já navegava há algum tempo. Fizera-se ao mar às primeiras
horas da manhã. Lá longe, adivinhava-se o Sol a querer romper. De feição
soprava um vento frio que, não sendo forte, chegava para enfunar aquele
enorme pano branco que tanta azáfama provocou ao içar.
De quando em vez elevava-se da proa uma cortina de água salgada que o
vento transformava em neblina. O sal e frio ajudavam a temperar as peles
curtidas dos marinheiros de pés descalços que, agastados de tanto adriçar,
circulavam pelo convés arrumando barricas enquanto o Contramestre dava
ordens ao timoneiro e tomava conta do mar. O barulho das gaivotas
misturava-se com o cortar das ondas. Na linha do horizonte a luz tomava
conta do céu.
Os primeiros raios solares já se faziam refletir na vela mestra, emprestando
ao convés uma cor dourada, entrelaçada por cordas esticadas. Aos poucos
lá se vão afastando da costa. Cada homem leva consigo, para além da
tarefa que lhe cabe nesta campanha, esperança do regresso.
Envolto em pensamentos, Domingos Gonçalves nem se dera conta da
passagem da Barra... há muito que esta ficara para trás.
Em Celeirós, depois de um dia de trabalho, Domingas Gonçalves vestida de
preto com a foice na mão, lá vem de “Covas de Baixo” ladeira acima para o
“Assento” com os socos gastos nos pés e com o cansaço estampado no
rosto; Já avista a casa de seu pai ladeada de dois frondosos castanheiros e
uma macieira brava. É casa de um sobrado com escadas em pedra bem
talhadas harmonizando o granito com o vermelho pálido da telha romana.
Cansada da monda, sempre arranja forças para dar de comer aos animais
que ficam na parte térrea da casa, lida e que já há muito se tornara
rotineira.
Isabel Francisca sua mãe, acabara de tirar o leite às cabras e prepara-se
para tratar da ceia, um caldo de sopa galega, misturada com o feijão que a
terra generosamente lhes oferece. Acompanhar não falta a saborosa broa
de milho… Enquanto isso, Geraldo seu pai, na sua camisa de estopa
manchada de sebo e com um velho gorro na cabeça, não acaba o dia sem
antes, devotar algum tempo àquele tear que está a construir com certa
meticulosidade. De enxó na mão lá vai aparelhando as madeiras que no
final lhe irão dar forma. Faz ideia de quando o acabar, vende-lo em
Ferreiros na feira da Misericórdia.
Construir teares, era para ele um complemento da atividade agrícola, arte
que aprendera desde rapaz com seu pai.
Este trabalho excecional representava um pé-de-meia que sempre o
ajudara a contrabalançar os anos maus na lavoura.
É aqui em casa de seu pai que Domingas se acolhe e encontra o conforto
nas horas de tristeza e de saudade.
À luz da candeia, com a mão sobre a barriga faz contas ao tempo; Ao
pensamento ocorre-lhe mil perigos a que Domingos está sujeito naquele
mar em que tanta gente vai e não volta, e pede a proteção de Santa Ana
que o traga de volta para que a criança que trás no ventre o possa vir a
conhecer: reza baixinho a Deus que lhe traga boa sorte.
Ao seu lado, com o sono a querer tomar conta de si, Isabel Francisca, sua
mãe, vai tecendo um pequenino chambre, aproveitando o último calor
daquelas canhotas já meia apagadas, mas que mesmo assim ainda vão
dando algum conforto aquela sala semi-escura, onde o pavio daquela
pequena chama que baila no candeeiro teima em continuar, deixando no ar
um cheiro a sebo, odor a que todos estão habituados.
Cansado, Geraldo, cedo se recolhe ao leito, mas sem antes em conjunto
fazerem as orações ao divino.
Cumpria-se assim mais um dia na rotina desta família que tinha na terra o
sustento do corpo e Deus por conforto da alma.
Sabendo-se que, historicamente o Norte deu muita gente ao mar1, esta
bem podia ser a história de Domingos Gonçalves.
Todavia, da sua verdadeira história, para além do que vem escrito no
assento do seu casamento, nada mais se sabe.
1
No início do sec. XVI, a região do Entre-Douro-e-Minho continuava a ser a mais
densamente povoada de todo o País apesar de, ao longo do século anterior, terem tido aqui
a sua origem grande parte dos movimentos migratórios que acompanharam os
Descobrimentos. Esta situação manteve-se ao longo dos séculos seguintes.
“Todavia, com as navegações, os camponeses minhotos programavam o destino entre a
opção de trabalhar a terra, onde a fome espreitava sempre e as pestes ameaçavam, e o
apelo das caravelas e da imigração para outros mundos.”. -Rui Feijó/João Arriscado Nunes -
Cadernos do Noroeste
Publicado em: mcb, Passado feito Vida, Testemunhos
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