Francisco Lopes Preto -11°avô
Não seria fácil, com toda a certeza, deambular pelas ruas do lugar e escutar os sussurros que se escapavam da boca dos coscuvilheiros da terra, à sua passagem. A terra era bastante pequena, um simples lugar onde todos se conheciam e as novidades espalhavam-se com o vento. Talvez fosse mesmo um misto de compaixão, da parte de uns, quem sabe um misto de vingança, da parte de outros, quando eles murmuravam entre dentes "...lá vai o filho da queimada...”. Quem o viu nascer, crescer, tomar corpo, não podia imaginar para que fados o destino o empurrara. Ou talvez não, se fosse caso de ser pessoa atenta e soubesse olhar à sua volta, com olhos de ver, olhos do corpo e olhos da alma. Mas nem seu próprio padrinho, António Mendes, que foi o vigário da Fatela e tinha outra preparação, mal podia imaginar os sofrimentos que aquele menino iria ter, ao longo da vida, quando lhe deu o nome na pia baptismal da Igreja de S. Martinho, ali mesmo no lugar do Fundão. Já quanto ao que teria passado pela mente da sua madrinha, tia paterna dele, de seu nome Beatriz Rodrigues, e que já vira muito sofrimento na família, ela sabia que este seria uma constante ao longo da sua vida, como tinha acontecido antes com todos os parentes mais ou menos próximos e continuaria a ser no futuro, enquanto a maldita Inquisição durasse.
Nas suas declarações, nada acrescentou ao que dela exigiam, antes pelo contrário. Sem grandes exercícios de imaginação, quase podemos vislumbrar uma atitude de desafio perante os presentes quando se justificava, face aos erros que lhe apontavam, que ”no tempo em que andava errada não confessava estes erros a seus confessores por os não ter por tais e não crer na confissão nem nos mais sacramentos da Igreja, os quais tomava e fazia as mais obras de cristã por cumprimento do mundo”.
A sentença foi cumprida no Auto de Fé do dia 5 de Abril de 1620. Era domingo. Tinha quarenta anos e deixara inconsoláveis os seus três filhos.
Francisco Manuel não mais voltou a ser o mesmo. Desde a morte da mãe que se habituara a ouvir os tais sussurros, à sua passagem, “...lá vai o filho da queimada...”. Podemos imaginá-lo a voltar o rosto, de raivas contidas, direito à maledicência, respondendo com altivez “sou filho da queimada, sim, e depois??...”.
Diogo Mendes Pereira - 7° avô
Naquela manhã do dia 30 de Janeiro, a vila da Covilhã devia estar soberba, sob o costumado manto branco que a cobria, mal começava o inverno. Corria o ano de 1692. Será fácil imaginar a velha igreja de S.Pedro, na sua pedra encardida, granito amarelado a puxar para uma paleta de cinzentos, alguns pingentes de gelo tombando em estalactites da torre sineira e o piso térreo exterior, irregular e de pedra solta, empapado de lamas e de bostas. Ali os invernos eram rigorosos. Seria assim porque naqueles tempos o tempo ainda era cheio de rotinas e cada estação era bem demarcada nos calendários, que a agricultura seguia e tornava lei.
A verdade é que quase todas as denúncias se resumem sempre à mesma ladaínha: observância dos jejuns e do shabat, com a inerente roupa lavada, azeite limpo e torcidas novas para as candeias, restrições no consumo de carne, utilização de vasilhames novos em caso de falecimento de algum membro chegado da família.
Quando Branca Maria, mulher de Duarte Navarro, denunciou, foi isso mesmo que disse e o escrivão registou numa caligrafia inclinada e estilosa: “...disse mais que haverá quatro anos, na vila da Covilhã, em casa dela confitente, se achou com Diogo Pereira, seu parente, ...consertando na sexta feira à tarde a candeia com azeite limpo e torcida nova, a qual havia de estar em casa todo o dia de sábado, faziam jejum no dia grande do mês de setembro, estando todo o dia sem comer nem beber, desde o pôr-do-sol até ao outro dia às mesmas horas, e antes deste jejum faziam outro chamado de capitão, oito dias antes, e mais três no ano…”
Francisco Mendes Paredes -10º avô
Preso Francisco Mendes Paredes, é lógico que toda a família se começou logo a movimentar na execução das estratégias, tanto mais que ainda não tinha decorrido um mês sobre o acontecimento e já o édito de prisão para Branca Rodrigues, sua mulher, era publicado em 22 de Dezembro. O palavreado era bem claro “…mandamos a qualquer Familiar ou Oficial do Santo Ofício…a prendais com sequestro de bens, presa a bom recato com cama e mais fato necessário a seu uso e cinquenta mil réis em dinheiro para seus alimentos, a trareis e entregareis debaixo de chave ao alcaide dos cárceres secretos …”. Assim se fez, com o zelo costumado, sendo entregue nos ditos cárceres em 16 de Janeiro de 1664.
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