Por José Luís Espada Feyo
D. Doroteia Maria Rosa Brandão Ivo Pedegache, existiu na Lisboa do século XVIII e inspirou indelevelmente a criação da célebre Blimunda, personagem
central do “Memorial do Convento” de José Saramago.
Tal conclusão está muito bem explicada e dissecada no ensaio literário
“A mulher e utopia em José Saramago – a representação de Blimunda em
Memorial do Convento”, da autoria de Burghard Baltrush, no qual tive a sorte de tropeçar.
Na obra “Descrição da Cidade de
Lisboa”, publicada em 1730, o seu autor falava já detalhadamente de D.
Doroteia Pedegache e de seus poderes sobrenaturais:
“uma
rapariga portuguesa que nasceu com uns olhos que bem pode dizer-se de
lince; possui desde a mais tenra idade o dom de ver no interior do corpo
humano bem como nas entranhas da terra. Aparentemente os seus olhos são
como os do comum dos mortais, apenas muito grandes e verdadeiramente
belos. Ela vê no corpo humano os abcessos e outras incomodidades e
muitas vezes fica indisposta por ver o corpo das pessoas atacadas de
doenças venéreas. Ela vê a formação do quilo, sua distribuição e
distingue a circulação do sangue. Nunca se engana, em mulheres grávidas
de mais de sete meses, no sexo do fruto que trazem no seu ventre. A sua
vista penetra a terra no lugar onde há nascentes que ela descobre a uma
profundidade de trinta ou quarenta braças, sem recurso a vara; diz com
precisão o curso da água, a profundidade a que se encontra a nascente e
distingue as cores e variedade das camadas de terra que existem sob a
superfície. Este dom maravilhoso só o usufrui enquanto está em jejum;
contudo, já lhe aconteceu depois da sesta, ter momentos de visão mais
penetrante do que de manhã e então ter visto nos corpos através dos
trajos o que ordinariamente não descobria através da pele”.
Tais
relatos ganharam eco além fronteiras quando em 1738 o viajante e
escritor francês Charles Frédéric de Merveilleux a refere nas suas Mémoires, que foram depois traduzidas noutras línguas europeias:
“conseguia ver o corpo humano, bem como o dos animais por dentro e
outrossim o interior da terra a uma grande profundidade. Existe em
Lisboa e nos arredores um grande número de poços que foram abertos por
indicação desta mulher, que garantia onde e a que profundidade se
encontrava água abundante e sempre se verificou com exacta precisão
qualquer das suas previsões. O mesmo direi em relação à faculdade que
tem esta senhora de ver no corpo humano as obstruções que se formam nas
partes nobres ofendidas quando as pessoas se desnudam na sua presença”.
Em 1777, os seus dons são objecto de estudo na Academia de Ciências de
Paris e em 1817 a sua história é ainda apresentada como assunto de
grande actualidade no Edimburgh Magazine.
Ao contrário de
muitas outras pessoas, que gozavam de fama idêntica, e que por isso
morreram nas fogueiras dos Autos de Fé, D. Doroteia Pedegache,
curiosamente, nunca foi perseguida pelo Santo Ofício, o que em grande
parte se explica pela sua elevada posição social. Seu marido, Pierre
Baptiste Pedegache, nobre francês instalado em Lisboa, era dos mais
abastados e influentes comerciantes e banqueiros da cidade, muito
próximo do Rei, e toda a sua família vivia na esfera da corte - seu
filho Miguel Tibério era Moço de Câmara de um dos Infantes e a Rainha
Consorte madrinha de baptismo de um dos seus filhos.
A esse
propósito se escreveu à época, dizendo-se: “El Rei e os homens
entendidos estão convencidos que não há impostura nestas manifestações e
tanto assim é que Sua Majestade lhe fez mercê, antes dela casar, do
dom, que não é muito vulgar em Portugal, e do hábito de Cristo para seu
marido”.
Conhecedor desta figura da Lisboa setecentista e da sua
singular história, com a qual terá esbarrado nos minunciosos e
aprofundados estudos de época que sempre antecediam os seus romances de
cariz histórico, José Saramago inspirou-se nela para criar a famosa
personagem, em tudo idêntica.
Todas as características de
Blimunda, nos mais pequenos pormenores, foram assim bebidos nesta
singular senhora - até na circunstância de D. Doroteia perder a sua
"singular faculdade nas mudanças do quarto de lua", conforme consta no
relato de 1730, à semelhança do que acontece no romance com a personagem
- tudo devidamente comprovado no referido ensaio que citei supra, só
diferindo no estrato social, onde Saramago optou por apresentá-la numa
pessoa humilde do povo – porventura em razão das suas convicções
ideológicas – ao contrário de D. Doroteia Pedegache, senhora de elevada
posição social e económica.
Publicado em: Curiosidades
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